Conto....Day off

Metáfora da minha descoberta

Não contei para ninguém o que aconteceu na madrugada passada. Acordei com um barulho de chuva caindo sobre o telhado, meio desorientado pelo sono, levantei da cama com o cobertor enrolado no corpo, a cama ficou gelada.
Chegando perto da janela vi que não chovia, fiquei constrangido pela sensação de medo que me dominava e acabei resolvendo investigar melhor o barulho, fui até a sala.
Sentado no sofá um senhor de cabelos longos, fumava um charuto, e mudava os canais de minha TV com tamanha naturalidade que recolhi o temor inicial e dei lugar a uma hostil curiosidade.
_ O que faz aqui?
_ Quem? Eu?
Resignado a imponente voz de meu desconhecido interlocutor, comecei a viajar em pensamentos atordoantes e percebi meu corpo mole esvaindo-se sobre o chão escuro de madeira da sala de minha velha casa.
_ Sim você, quem é você? O que quer? Leve tudo, pode levar tudo, mas vá agora embora!
O meu discurso foi interrompido suavemente com a aproximação do velho, sentou-se ao meu lado no sofá de dois lugares, colocou a mão sobre meu ombro, inspirou toda aquela fumaça no meu rosto e sorriu um sorriso amarelo e mordaz.
_ Venha comigo, vamos dar uma volta.
A força daquelas palavras não deixavam qualquer outra reação surgir a não ser a disciplinada movimentação em direção igual a do homem que me persuadia.
No espaçoso quintal de minha casa, alguns pneus se aglomeravam ao canto e uma grama que mais parecia uma floresta inóspita escurecia ainda mais o ambiente que ali se desmanchava.
Caminhamos lentamente, o tempo arrastava-se conosco, a presença daquele desconhecido era confortável e eu sentia uma imensa vontade de acender um cigarro. Não quis voltar à sala para pegá-lo, então pedi uma tragada do charuto de meu silencioso inconvidado.
_ E a chuva? Perguntei enquanto dava uma tragada.
_ Está dentro de você.
Ouvi o Bolero de Ravel atravessar minha mente, supondo que eu estivesse tendo uma alucinação passageira, a chuva, o homem, o charuto, nada era real, mas o frio ainda era.
O céu tomou uma cor avermelhada, tal qual prenuncio de tempestade, mas não havia vento, apenas um sereno entorpecente. Abriu-se no meu quintal um buraco imenso, não podia visualizar seu fundo, o homem me empurrou para ele. Tentei resistir, lutamos como se estivéssemos fazendo Tai Chi Chuan, foi engraçado. A força dele era mental e suas palavras não enunciadas entravam em minha cabeça numa osmose conflituosa entre medo e felicidade.
Acabei entrando no buraco, ou melhor, caindo, mas acredito que foi por opção própria, na medida em que eu caia naquele poço, a chuva que eu ouvira, molhava meu corpo, já não tinha mais a minha coberta. A vida solitária que cultivei, passava pelas janelas figurativas daquele poço sem fim, eu ainda ouvia as palavras do homem, que me diziam: não acredite em mais nada, já basta o que vive agora, não há explicação para minha existência, até porque, eu existo em outros não em você, minha face é sua incógnita favorita. Não tenha medo porque a chuva cessará.
Encontrei-me na terra molhada, banhado de uma loucura inexplicável, como minha fascinação por relâmpagos e chuvas barulhentas, o que me despertou? Quem era o homem, o diabo?
Sonho ou não, descobri a verdade, já seco e aquecido sob minha coberta de lã vermelha. O homem poderia ser minha consciência que apelava para a resistência de minha vida sobre a morte, a morte dos ideais, da filosofia que abandonei em versos não terminados sobre uma mesa qualquer. O homem não era eu, a madrugada continuava e um dia lindo começaria. Levantei e a chuva caia torrencialmente lá fora, resolvi não trabalhar.

Comentários

  1. Fiz essa viagem (agora, 'depois' de você).
    Fiz, em parte, de maneira literária, mas também com minha alma (vejo melhor com ela).

    Um trecho:
    'A força daquelas palavras não deixavam qualquer outra reação surgir a não ser a disciplinada movimentação em direção igual a do homem que me persuadia.'

    Engraçado... De certa forma, obriguei minha mente a seguir o que escreveu; ela teimou em ler de outra forma essa imagem escrita, com outras palavras quero dizer.
    Fiquei matutando na forma, no jeito 'rico', com que vc utilizou as palavras... imaginei: se fosse um homem a escrever, seria diferente? Teria sido escrito de maneira diferente?
    Achei criativa sua forma..., realmente! Rica! Cheia de nuances...!

    Esse trecho foi como um divisor de águas..., continuei a ler mais atento, mais desperto.

    Não me ative a conclusão em que ele chegou, era 'um assunto dele', vamos dizer assim; mas, me ative sim, ao desenrolar dos acontecimentos que o levaram a concluir o que concluiu.

    A vida as vezes é tão maluca que achamos (as vezes), que qualquer coisa pode acontecer... (conosco).

    Valeu.
    Obrigado.

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  2. Cris
    Se o homem era a consciência do personagem, então o homem era ele. Não há consciência em separado de uma entidade, de uma alma.
    Se o personagem, mesmo tendo adquirido a consciência de que não se pode aferrar-se a alguns valores, de maneira tão... onírica, não ousar assumir como sendo sua essa descoberta, então de nada lhe valerá a aventura do sonho vivido.

    Abrçs.

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