Ela não aprendeu "ingrês"

Rita andava inconformada com sua situação. Trabalhava na casa de madame Léonie, que tinha à atividade meretrícia se dedicado muitos anos de seu passado, presente e questionável futuro .A moça tinha recém virado mulher, comprara sapatos de salto vermelhos, batom brilhante e lingerie sedutora. Eram peças indispensáveis para o trabalho que exerceria nos próximos incontáveis, porém fugazes, anos. 
Quando numa noite quente, o suor que escorria entre seus seios cheirava lascívia, ela deteve-se a uma antiga ideia, sobre aquele velho quase decrépito, maquinava avidamente seu plano de carreira: Ir para a "Ingraterra".Aos doze anos, numa visita ao médico, Rita conhecera Petter, um caucasiano de língua enrolada, que acabara de chegar ao Brasil casado com uma mulata que prestava serviços sexuais em seu país; o homem era inglês, fala pausada, quase incompreensível para a menina pobre que mal aprendera escrever os seus dados pessoais. Naquele dia, percebendo a postura diferenciada do médico, sentiu um desejo aniquilador de entregar a carne.
Sobre à maca, o exame executado com duvidosa minúcia, excitara-lhe de maneira ainda nova, com arrepios inocentes, com subversiva inexperiência. Daquele dia em diante, seus dias seriam dedicados a ganhar dinheiro e conquistar o exterior, casar-se com um velho respeitável e retornar ao país com título honroso, esposa de gringo. 
O inglês seria sua língua, vermelho sua cor, mercedes o seu carro e de ouro seus brincos de argola. Onde aprenderia tal idioma? Antes de tudo, ganhar o dinheiro da passagem. Foi parar instintivamente nas mãos da prostituição, nada mais seria inocente, celestial, doce. 
Vários clientes, cama sempre quente e úmida. Comida requentada, feijão aguado, arroz duro, almoço e jantar, quando muito jantar. Assistia aos filmes americanos, séria frente à TV acreditava que tudo que via era "Ingraterra".Juntou em alguns anos a quantia suficiente, arrumou suas malas, penteou o longo cabelo pintado de loiro e foi à luta. No aeroporto, a emoção transcendia a razão, embarcaria para a realização de seu sonho.
No balanço das nuvens, sabia exatamente o que faria na chegada. Instalar-se num lugar qualquer, conhecer alguém que lhe utilizasse a carne, e com um tempo, curto espaço de tempo, encontraria seu par. Os primeiros passos em solo estrangeiro foram como passos dados sobre nuvens. Só ela sabia o quão difícil fora chegar ali. Anos tortuosos, apenas coloridos por um desejo maior que a própria dor. Léonie foi a responsável pelos documentos, fotos, e dicionários, elementos que seguramente, na concepção da menina, eram os únicos quesitos necessários para sua viagem. O custo dessa ajuda foi alto, além dos clientes rotineiros, homens fedendo à graxa e adúlteros violentos, atendia às necessidades secretas de Léonie. Nas noites de sábado, entrava no quarto da madame, tomavam vinho, trocavam palavras soltas, deitavam-se e lentamente entregavam-se aos indubitáveis prazeres que somente uma mulher poderia dar a outra. Embora não contente inicialmente, Rita fora se acostumando ao dúbio temperamento de sua patroa, a aos poucos soltava seus gemidos guardados, o gozo que antes fingido, ali era molhado, concomitante ao falso remorso, feminino sob os lençóis de algodão floridos.
 Era necessário manter a rotina das horas de pecado, o futuro dependia da manifestação antes inimaginável de seus instintos naturais. Aprendeu mais palavras, algumas frases, associava à sua língua materna as pequenas partículas de léxico adquiridas. Chegou ao tão aguardado e provável paradisíaco destino.
Ao chegar na imigração, tirou da bolsa o passaporte, não queria abrir a boca. Rezou mentalmente uma oração ensinada por sua mãe, contemplou o céu acinzentado através dos vidros, respirou profundamente como animal acuado, não entregaria facilmente suas armas, nem deixaria um lágrima manchar seus olhos de preto.
Ao entregar os documentos, olhar fugitivo, amedrontamento explícito e mãos suadas. Nada do que ouvira fora assimilado. Alguns minutos depois estaria numa sala fria, confusa, faminta, Rita segurava a emoção do desespero e conservava a esperança. Uma voz apressada lhe cortava os ouvidos. Nada era nítido. As palavras que treinara para usar ali, não saíram do fundo da memória.
As relações rizomáticas de Rita, ali nada mais eram do que uma lembrança distante dentro de um novo mundo repleto de sinais, para ela indecifráveis. Os homens e mulheres que acariciavam-na, agora eram imagens distantes diante do terror que era sua total alienação perante aquele cenário.
_ "Me solta daqui, seu moço, eu falo ingrês"
.Só via rostos sem expressão e nenhuma resposta. Subitamente quatro homens vieram em sua direção, adentrando abruptamente naquela sala fria. Um objeto não identificado feriu seu corpo, a dor alastrava-se rapidamente. Entorpecimento da alma... Sangue sujo, estrangeiro, pobre, pintava o chão da "Ingraterra".
Não satisfeitos, aqueles homens arrancaram-lhe a roupa, investigaram seus orifícios, corromperam aquilo que ainda não tivera sido corrompido, seus sonhos.
Não sabia mais se em vida ou morte , enxergava uma placa ao longe : " Welcome to England"... O que seria aquilo senão um grande paradoxo?
Com a cabeça doendo e ainda tonta, abriria os olhos sobre a hirta barba de seu médico favorito. Ainda faltavam muitas aulas de "ingrês", pensava ela, palavrinhas como "me deixem ficar no seu país", seriam muito úteis na sua grande viagem. E como consta no naturalismo pintado no Cortiço, para evoluir o ser precisa sobressair-se às espécies mais fracas, mas Rita por enquanto, naquele quarto, ainda era a mais fraca.

Comentários

  1. Li de um fôlego só (sei lá se 'fôlego' tem acento; nem me interessa: pra mim tem).

    Tenho procurado aqui no Blogguer pssos que escrevem da maneira como você:
    a história flui, o que pesa (mais) está subjacente, a realidade é inquestionável mas não nescessáriamente cruel, sentimentos são preservados e não são questionados (apenas, colocados). Por isso, pela sua criatividade, fôlego (é um conto 'longo'...), e sensibilidade de contar uma história tão conhecida por um angulo..., não inusitado, mas intuído: como, eu diria, umas das cores de um prisma, que, como sabemos, vem de 'um' raio de luz branca. Existem muitas histórias de meninas como a sua, mas, nenhuma como essas bem determinads circunstãncias descritas tão bem por você.

    Valeu Cris. Seu blog ficará em minha primeira pagina. Eu mereço.

    Bjs.

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  2. O Colorações do Cérebro se mudou, siga-nos em www.coloracoes.blogspot.com

    =*

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