Se a faca estivesse afiada

 Já estava sendo costurado quando recebi a notícia de que a Gabi tinha ido embora. Agora estava eu, com a camiseta cheia de sangue, entorpecido de analgésicos e com a dor da traição daquela que era a causadora daqueles cortes espalhados pelos braços e mãos, que há poucas horas segurava o violão que uma música composta para ela eu tocava. 

Desde aquela manhã sentia algo errado, peguei a carteira de cigarro, tinha apenas um, fumei depois do gole de café que tomei apressado, corri para não perder o ônibus, mesmo assim o perdi e cheguei atrasado. 

Marcamos de nos ver às 20h, ela daria um jeito de se livrar da mãe manipuladora e me encontrar na casa do nosso amigo Ricardo. Eu contava os minutos, carregando aquelas caixas pesadas no mercado, tentando lembrar da letra daquela música que fiz pra ela, tão delicada como aquele rosto, tentando ser linda como aquela pele. 

Passei a mão numa garrafa de vinho e me apressei para sair do trabalho e pegar o violão de um amigo emprestado. O tempo rasgou o dia, desci correndo a rua em direção a casa do Ricardo. Na frente da casa dele eu vi de longe a Gabi, estava brigando com a mãe, não tínhamos muita convivência, a velha me evitava, apesar de que eu sempre quis levar a relação a sério. 

Ao me aproximar, Gabi veio correndo me abraçar, com uma mala na mão, já me dizendo que foi expulsa de casa. Eu até fiquei feliz, mesmo pobre, eu sabia que daria conta de nós dois. Não perguntei sobre o que aconteceu entre elas, apenas abracei a minha menina, deixei o violão no chão e beijei sua testa. 

Ela quis entrar. Entramos, sentamos na varanda e Ricardo veio até nós. Trouxe água, copos para o vinho. Toquei a música, antes declarei que era para ela, “Dona do meu desejo”. Ela sorriu, mas contida, bebeu todo o vinho do copo, não pareceu prestar atenção. 

Depois que terminei o show patético, esperei um beijo, comentários, mas ninguém se manifestou. Ricardo acendeu um cigarro e entrou, Gabi foi logo atrás. Não entendi. 

Ouvi um grito, que me arrepiou a alma, corri até eles, Ricardo segurava os punhos dela. 

Bati nele com o violão que eu ainda segurava. Ele quebrou a garrafa e veio sobre mim. Não lembro de muito mais. Só da voz dela: “Deixa ele, amor, vamos, Ricardo!” 

Sei que vieram até o hospital comigo, disseram-se sobre um casal, deduzi. Agora, dois anos depois, os movimentos das mãos voltaram, quero tocar uma música no velório de duas pessoas, assim que encontrá-las.

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