Conto dos tomates, um vinho e a bicicleta.
O que eu escutei foi "se cuida". quem me conhece sabe que eu abomino essa frase. meus olhos estavam ardendo e por uma triste coincidência parecia choro.
A crueza dos restos humanos são como as pedras duras chutadas, não as de Drummond, ocasionalmente encontradas no caminho, mas pedras que são inesquecíveis pelo mal sentido.
E entre pontos e vírgulas que vou colocando variando da norma, vou contar uma história rápida e sem relevância para você.
Num mundo digital em que a epidemia do narcisismo impera, encontrar um sorriso verdadeiro que acolha a alma é uma pérola negra. não há Eros que resista a tamanha apatia aos sentimentos mais puros, a carência aumenta e os defeitos mais repugnantes são maquiados para o deleite do corpo.
Fui ao mercado comprar uns tomates, entre um corredor e outro, algumas garrafas coloridas e uma roupa chamativa me fizeram diminuir os passos. Uma olhada mais atenta e uma criação cinematográfica na cabeça fizeram a coragem emergir e tornar o embate fático mais fácil... "oi, alguma sugestão?", e alguns batimentos cardíacos mais exaltados esperando uma resposta, tardia, mas positiva, " os tintos combinam com seus tomates".
Dali para o caixa, um vinho caro, um pretexto infantil e enfim as portas silenciosas do mercado.
"te acompanho?" . "pra onde?". "pra casa". suspiros e a dúvida. saudade de um abraço quente e lá vamos nós de novo.
Ao seguir carro a carro pelas ruas molhadas da cidade, tive várias chances de mudar de ideia, não recorrer àquela desesperada tentativa de uma noite mais variada. A garagem se abre, os carros buscam espaços na garagem apertada. todas os medos e perigos da vida moderna dissipados num perfume que seguia aquela pessoa ou a pessoa o seguia e me enebriava.
Contamos poucas coisas sobre ser o que éramos, sobre gostar de coisas das quais todos gostavam, frivolidades amenizadoras e desejos mais iminentes... chegando à cozinha, a garrafa e sua serventia. bebemos, ouvimos o som da rádio, sem intervalos e com músicas dos anos oitenta.
O telefone toca, ele não atende, eu não finjo estar alheio, continuo meu jogo capturador.
As taças vazias, por fim o beijo. Insonso e molhadinho, uma mão que não ia e nem vinha. decisões sem palavras e o que segue é tão clichê que parece filme da madrugada. Nada de mais e nem de menos. experiência nova e um veneno novo nos implícitos tormentos. "sabe quem sou?". "não o nome". "não lembra?". leve coceira na cabeça e certa curiosidade deprimente. "na realidade não sei do que está falando".
Se eu pudesse descrever o que se seguiu... não seria diferente de uma novela mexicana. Primeira vez que abro o armário, a porta ainda aberta e o corpo com dores novas, uma sensação meio doce e satisfatória, mas um medo, do futuro que não seria, batendo à porta. "seus olhos já foram mais brilhantes"...
Apaixonei-me pelo sarcasmo dele, agora revelando uma expressão de sabedoria e blindagem indubitáveis.
"me lembrei sim, e peço desculpa". "desculpas aceitas".
Vestimos nossas roupas e todos os dias àquela hora eu pensava nele.
Passadas algumas semanas, queria tanto tudo de novo. não contente com as ligações da gata linda da academia e das investidas da colega de trabalho, vesti meu preto e fui à caça.
Dez anos antes, perto da faculdade, um menino franzino atravessava a rua com sua nova bicicleta. passei por cima, não matei. Desci e vi que nada grave acontecera e, sem muitas palavras, despedi-me do problema. Vários telefonemas me alertaram da minha responsabilidade e eu na mais resistente frieza, me achava dono da razão, se não, a própria razão.
Voltando ao mercado, tentativa adolescente de voltar ao local do crime, encontro o vinho tinto separado, olho para o lado e o quadro está pintado.
Fomos ao momento intermediário do encontro anterior, dessa vez mais excitados, ou eu o estava.
Na saída, sem muita limpeza, nem fome nem sede, o baque: "ainda quero minha bicicleta";
Não teve jeito, da minha boca saíram palavras que pude escutar como se fossem de outros, mantive minha razão, perdi a chance de mais novos deleites. e ele deve ter se cuidado. Hoje casado, meus filhos não andam de bicicleta.
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